quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Migrações Internacionais I



Migrações Internacionais Contemporâneas  Roberto Marinucci[1]Rosita Milesi[2]                                                                                                                              Introdução As migrações internacionais, atualmente, constituem um espelho das assimetrias das relações sócio-econômicas vigentes em nível planetário. São termômetros que apontam as contradições das relações internacionais e da globalização neoliberal.
Numa perspectiva sociológica, as migrações são percebidas sob a ótica estruturalista como uma das conseqüências da crise neoliberal contemporânea. No contexto do sistema econômico atual, verifica-se o crescimento econômico sem o aumento da oferta de emprego. O desemprego passa a ser uma característica estrutural do neoliberalismo, e as pessoas, então, migram em busca, fundamentalmente, de trabalho. E isto se verifica tanto no plano interno como no internacional. Sobre a lógica do progresso econômico e do desenvolvimento social impera a lógica do lucro, onde todos os bens, objetos e valores são passíveis de negociação, como as pessoas e até os seus órgãos, a educação, a sexualidade e, inevitavelmente, os migrantes.
Tomando por base o referencial demográfico, tem-se que os deslocamentos migratórios fazem parte da natureza humana, mas são estimulados, quando não forçados, nos dias de hoje, pelo advento da tecnologia e pelo impacto da problemática econômica, nesta lógica inversa de sua preponderância em relação ao ser humao..
Na ótica jurídica, um olhar rápido sobre a regulamentação da matéria evidencia as mudanças: No século XIX, muitos países não adotavam diferenças entre os direitos dos nacionais e os dos estrangeiros. Assim, o código Civil holandês (1839), o Código Civil chileno (1855), o Código Civil Argentino (1869) e o Código Civil Italiano (1865) eram legislações que equiparavam direitos. Com as guerras mundiais ocorridas nas décadas de ’20 e ’30 houve um retrocesso em relação à compreensão dos direitos do migrante e muitos países estabeleceram restrições aos direitos dos estrangeiros em suas legislações.
No Brasil, a Constituição de ’34[3] e a de ‘37[4] refletem esta tendência. A Constituição de ‘46 seguiu esta orientação de restrição aos direitos dos estrangeiros, consubstanciada em abundante legislação infraconstitucional. Com o fim da II Guerra Mundial, o Brasil entra em um período de expansão. Flexibiliza-se a política de imigração para poder buscar mão-de-obra especializada. Tal situação configura-se no texto do Decreto-Lei no. 7.967[5], de 18/09/1945, buscando aliar aquela necessidade com a proteção do trabalhador brasileiro. Mas, por outro lado, mantém uma postura racista, ao privilegiar a imigração européia.
Já a Constituição de 1988 abre-se para outra visão.  Assegura caráter hegemônico ao conceito de que os estrangeiros residentes no país estão em condição jurídica paritária à dos brasileiros no que concerne à aquisição e gozo de direitos civis, como afirma o art. 5º, caput[6], que assegura a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança[7]. Contudo, o Brasil convive, ainda em nossos dias, com um Estatuto do Estrangeiro superado, editado em plena vigência do regime militar, a Lei 6815/80.

1. Conjuntura atual1.1. O final do século XX e o começo do novo milênio estão caracterizados por um clima de desilusão e desconfiança, conseqüência de situações vividas e sofridas durante o século findo. Apesar dos ideais libertários e igualitários do mundo moderno, a humanidade conheceu os crimes hediondos de Auschwitz, de Hiroshima, do campo de concentração de Gulag, das ditaduras militares, da depredação do meio ambiente e do empobrecimento dos povos do sul do mundo.
Esta sensação de desilusão foi impulsionada também pela conjuntura política. A queda do muro de Berlin representou um golpe para os que acreditavam na possibilidade de planejar sociedades igualitárias e justas. Sobrou a dura lei do mercado, logo proclamada como única vencedora. Os falsos profetas vaticinaram: é o fim da história e da utopia; não precisa olhar mais para o horizonte, nem buscar mais, pois o destino da humanidade já está traçado: é o caminho da globalização neoliberal.
Desfrutando do barateamento e dos avanços tecnológicos no âmbito da comunicação e dos transportes, este modelo de globalização garante mais direitos aos capitais e às mercadorias que aos seres humanos. Com efeito, o que caracterizaria a época atual, mais que uma “globalização”, seria uma verdadeira “dualização” do planeta, estruturada de forma a enriquecer os mais ricos e empobrecer os mais pobres. Estes, não raramente, são reificados ou mercantilizados em vista da maximização do lucro, o grande móvel da nova ordem internacional.
Nesta conjuntura, agravada com os atentados de 11 de setembro (EUA) as migrações, que no passado eram vistas como um potencial de trazer novidades enriquecedoras, agora são tidas como uma fonte de terrorismo, ameaça ao emprego dos autóctones e à segurança dos Estados.
Por outro lado, a intensidade e a complexidade da mobilidade humana contemporânea trazem sérias interrogações em relação a suas causas. Trata-se de um fenômeno “espontâneo” ou “induzido”? Estamos diante de migrações “voluntárias” ou “forçadas”? Na realidade, tem-se a impressão de que a emigração maciça para os países do Norte do Mundo, antes que conseqüência da livre escolha de indivíduos, decorra diretamente da crise do atual modelo de globalização neoliberal que concentra as riquezas e subordina o capital produtivo e gerador de empregos ao capital especulativo.

A propósito, vale citar a afiramção de Roberto Kurz: “É preciso deixar de dar explicações do tipo ‘o ser humano sempre fez guerras e sempre migrou’. Isto não ajuda a compreender este fenômeno que é inédito e nunca ocorreu em tão alta escala como agora. A migração não é nada novo na história da modernização, mas, sim, há um erro na avaliação ao dizer que as pessoas migram livremente em busca de melhores condições. É um processo coativo. Os pobres são livres para vender sua mão de obra, porém fazem isto porque não têm condições para controlar sua existência. A transformação da sociedade capitalista numa situação mundial produziu uma sociedade de exclusão. O ser humano participa de um sistema no qual vende abstratamente sua mão de obra e integra uma engrenagem (montada) para produzir acumulação infinita de capital, ” afirma.
1.2. Essa realidade pode ser elucidada por meio de alguns dados estatísticos. O relatório da FAO de 2003 sobre Insegurança Alimentar[8] mostra que entre 1995/97 e 1999/2001 houve um aumento em 18 milhões de pessoas que sofrem fome crônica. Esses dados tornam praticamente inviável o propósito, feito na Cúpula sobre Alimentação de 1996, de reduzir pela metade o número de pessoas famintas até 2015. Conforme o mesmo relatório, as regiões geográficas em que a porcentagem de pessoas famintas é maior são: a África (com exceção da África do Norte), a América Central, o Caribe e a Ásia Meridional. No Dia Mundial da Alimentação, 17 de outubro de 2004, a FAO denunciou que morre de fome uma pessoa a cada quatro segundos: dos 842 milhões de seres humanos que passam fome no mundo inteiro, 798 (sobre)vivem nos países em desenvolvimento.
O décimo relatório anual da UNICEF, “A situação Mundial da Infância - 2004[9], revela que entre os 2,2 bilhões de crianças (até os 15 anos) que vivem no mundo, 1,9 bilhões residem em países em desenvolvimento, sendo que um bilhão delas subsistem na pobreza. Aproximadamente, uma em cada duas crianças vive com alimentação não adequada, sem acesso à educação nem à água potável. O relatório denuncia também o elevado número de crianças que trabalham (180 milhões), morrem em conflitos bélicos (45% das vítimas), são obrigadas a fugir de conflitos (20 milhões), são traficadas (1,2 milhões) e exploradas sexualmente (2 milhões).
Estes dados tornam-se mais dramáticos ao constatar que a raiz da fome “não é a falta de alimentos, mas a falta de vontade política”, como afirma Jacques Diouf, Diretor Geral da FAO, no prólogo do supracitado relatório. Os fracassos das cúpulas multilaterais sobre desenvolvimento sustentável (Johanesburgo) e alimentação (Roma) revelam a pouca preocupação dos países mais ricos com a “Auschwitz contemporânea” - a miséria e a exclusão da maioria da população mundial - e a frágil e hedionda tentativa de resolver o “problema” migratório através de políticas excludentes.
1.3. Essa situação, já dramática, é ulteriormente agravada pelo recrudescimento de políticas imperialistas e unilaterais, ideologicamente legitimadas pelo combate ao terrorismo. De fato, após os atentados de Nova Iorque, alastrou-se um clima de desconfiança e suspeita em relação a todos os estrangeiros. Em nome da defesa dos direitos humanos, implementam-se políticas e legislações imigratórias cada vez mais rígidas, a ponto de provocar reiteradas denúncias por parte de organizações internacionais de promoção de direitos humanos.
A utilização indiscriminada da força bélica, mesmo sem o consentimento de organismos multilaterais, torna cada vez mais difícil distinguir aquelas ações realmente voltadas à luta contra o terrorismo e aquelas que, ao contrário, visam a imposição dos interesses geopolíticos e econômicos de determinados países. Na realidade, tem-se a impressão de que os acontecimentos do dia 11 de setembro tenham apenas radicalizado e legitimado uma tendência pré-existente em considerar o estrangeiro como uma ameaça - econômica e cultural - para os países ocidentais.
 2.  Sinais de esperançaNão faltam, no meio de todas essas sombras, sinais de esperança. O Fórum Social Mundial com seu lema “Um outro mundo é possível”, os generalizados protestos, em 2004, contra a guerra no Iraque, a prática inserida e cotidiana de movimentos populares pacifistas, ecológicos, contra o racismo, pela promoção da mulher, contra o trabalho escravo, contra o tráfico e exploração de crianças e, mais em geral, em prol dos direitos humanos, revelam a existência de uma rede de resistências contra o atual modelo de globalização neoliberal. Muitos desses movimentos populares estão se tornando verdadeiras caixas de ressonância do clamor de milhões e milhões de empobrecidos e excluídos que com suas vidas sofridas, seus corpos martirizados e seus corações feridos clamam por uma sociedade planetária em que todos tenham reconhecidos e respeitados os direitos de cidadania

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