quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O Paradoxo da Água


O paradoxo da água
Setenta por cento da superfície do planeta é coberta por água - mas só 1% de todo esse enorme reservatório é próprio para o consumo do homem. O desafio é evitar a poluição, o desperdício e distribuir melhor esses recursos hídricos
Uma das visões mais espetaculares do século passado foi a primeira imagem da Terra feita do espaço, na década de 60: uma gigantesca massa azul, com 70% de sua superfície coberta por água. Neste início de século, uma preocupação recorrente e justificada é a de que a água, tão abundante, se torne paradoxalmente cada vez mais escassa para uso humano. Em março deste ano, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan, decretou os anos que vão de 2005 a 2015 como a Década da Água.
 O objetivo é que nesse prazo se reduza à metade o número de pessoas sem acesso a água encanada, cifra que ultrapassa 2 bilhões de pessoas. Mantidos os atuais níveis de consumo, estima-se que em 2050 dois quartos da humanidade viverão em regiões premidas pela falta crônica de recursos hídricos de qualidade. É um dado gravíssimo quando se leva em consideração que 60% das doenças conhecidas estão relacionadas de alguma forma com a escassez de água.
 Como isso é possível em um planeta com tantos recursos hídricos? O problema pode ser equacionado em dois termos: má distribuição e má gestão. O primeiro se deve à própria natureza, o segundo é culpa do homem. A água é realmente a substância mais comum na Terra. No entanto, 97% dela está nos mares, sendo assim imprópria para o uso agrícola e industrial e para o consumo humano. Outros 2% estão nas calotas polares, em forma de gelo ou neve. Resta, assim, apenas 1% de água doce, aquela disponível nos rios, lagos e lençóis freáticos. Essa água é extremamente mal distribuída. Países como o Canadá e a Finlândia têm muito mais do que precisam, enquanto o Oriente Médio praticamente nada tem.
O Brasil, dono da maior reserva hídrica do mundo 13,7% da disponibilidade de água doce do planeta, expressa internamente esse paradoxo. Dois terços da água estão concentrados na região com menor densidade populacional, a Amazônia. Isso significa que um brasileiro de Roraima tem 1 000 vezes mais água à disposição do que um conterrâneo que vive no interior de Pernambuco.
 A água é pesada e difícil de transportar. Levá-la de um lugar a outro tem sido o grande desafio dos seres humanos desde o tempo dos romanos, que construíam aquedutos por toda parte. O segundo problema relativo à água éa má gestão e, nessa área, há outro paradoxo. Mesmo sendo essencial para a economia, a água sempre foi dada de graça. Atérecentemente, nem os industriais nem os agricultores, para não falar dos consumidores domésticos, pagavam pela água, apenas pelo serviço de distribuição.
É claro que, aplicando-se à risca o princípio econômico segundo o qual não existe almoço grátis, esse raciocínio não se sustenta. No fundo, toda a sociedade paga quando o governo subsidia empresas estatais para que tratem a água que um empresário vai usar em sua fábrica, ou quando constrói uma barragem para que um rio seja colocado à disposição dos lavradores para a irrigação.
 Quando não se paga pelo que se consome, o resultado inevitável é o desperdício. Por isso, quando se fala em solucionar os problemas da água no mundo, uma palavra surge como um mantra: precificação. Significa que o governo, que éo dono em última análise dos mananciais naturais de um país, deve cobrar pelos recursos hídricos consumidos por seus cidadãos, revertendo o dinheiro para a cobertura dos custos de tratamento da água e preservação dos ecossistemas ligados a ela.
Isso já ocorre em países como França e Alemanha, considerados exemplares na gestão de água. No procedimento mais utilizado, o empresário ou o agricultor paga duas vezes: pela água em si e pela licença para jogar os resíduos nos rios. Com isso, ele é incentivado a gastar pouco e a tratar ele próprio a água antes de devolvê-la à natureza. "Cobrar pela água é muito mais eficaz do que estabelecer milhares de leis de preservação, quando se sabe que o Estado não vai ter como contratar gente para fiscalizar e cobrar multas", diz Benedito Braga, diretor da Agência Nacional de Águas, criada em 1997. A agência iniciou recentemente um projeto piloto de cobrança da água no Rio Paraíba do Sul, compartilhado pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. No ano passado, foram arrecadados lá cerca de 6 milhões de reais, os quais serão reinvestidos em estações de tratamento em doze cidades.
No futuro, os consumidores domésticos também terão de repartir a conta da água com empresários e agricultores, ainda que respondam por apenas 10% do gasto de água doce no mundo. Afinal, são os esgotos não tratados os principais responsáveis pela poluição dos rios, principalmente os das grandes metrópoles. O problema só será resolvido quando se começar a cobrar pela água em si, não apenas por seu abastecimento.
 Embora a idéia da precificação seja praticamente unânime, existem os que argumentam que ela tornaria a água mais cara para quem mais precisa dela: a população mais pobre. Existem várias maneiras de evitar que isso ocorra. Na África do Sul foi estabelecido um consumo máximo por pessoa apenas acima disso se cobra pela água. A verdade é que o que sai caro, para a população pobre,  é não ter água. Nos países onde a carência é dramática, são as mulheres as encarregadas de ir até o rio mais próximo com um vaso na cabeça e, como ele freqüentemente fica a quilômetros de distância, às vezes se perde o dia inteiro nessa empreitada.
Há pelo menos três mitos sobre a questão da água, magnificados pela grita dos ambientalistas radicais mas que não condizem com a realidade. O primeiro reza que a água do planeta estaria acabando. Não é verdade. A água é um recurso infinitamente renovável, já que, em seu ciclo, ela cai das nuvens em forma de chuva, fertiliza a terra, vai para o mar pelos rios e evapora de volta às nuvens, novamente como água doce.
 O segundo diz que o consumo doméstico desmedido estaria acabando com a água do planeta. Trata-se de outro exagero. Apenas um décimo da água potável disponível é gasto para que os homens cozinhem, lavem roupa e façam a higiene pessoal, enquanto 70% são alocados para a irrigação agrícola esta, sim, a grande vilã do desperdício. O terceiro mito, derivado desse, é o de que os recursos hídricos vão acabar porque, quanto mais o mundo se desenvolve, mais ele precisa de alimentos e, conseqüentemente, de água. Também não é exato.
 A modernização das técnicas agrícolas vem fazendo com que caia o consumo de água. De acordo com uma estimativa do Pacific Institute, um dos mais respeitados centros de estudos mundiais sobre o assunto, o consumo total de água nos Estados Unidos era de 600 quilômetros cúbicos por ano na década de 80. Hoje está em menos de 500. A queda se deve também à economia na indústria e no consumo doméstico. Nas fábricas, nos anos 30, gastavam-se em média 200 toneladas de água para obter 1 tonelada de aço. Hoje, usando-se os métodos modernos, esse consumo caiu para 3 toneladas. Nas casas, por exemplo, a quantidade média de água utilizada nas descargas dos banheiros caiu para um quarto do que era há vinte anos. O verdadeiro dilema é conseguir que, com uma população mundial em constante crescimento, os recursos sejam mais bem distribuídos e que sua qualidade seja mantida. A história ensina que o ser humano administra melhor aquilo que é tratado como bem econômico. A água, que está na base de todas as cadeias produtivas, faz jus a esse tratamento.

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