terça-feira, 14 de outubro de 2014

Biomas Brasileiros-Cerrado II


Cerrado: um drama em silêncio

Outra alternativa é descer o rio Araguaia, das praias de areia branca que mudam de lugar de ano para ano. No pôr-de-sol esplendoroso tuiuiús aninham-se no alto das árvores. E biguás.E garças, uma profusão de aves mergulhando em busca de peixes. Num trecho resguardado do rio - em certas áreas a pressão humana é forte demais - podem ser encontrados os enormes piracucu e jaú, ou matrinxã e pintado. A linda pirarara, que salta acima da superfície para exibir suas escamas coloridas, divide as águas com o boto que, diz a lenda, seduz donzelas que se banham distraídas. Há ainda a temível piranha, ingrediente de sopa afrodisíaca. Na ilha do Bananal, no grande Araguaia, os índios carajás podem receber quem chega com um jaraqui fresco e assado à beira-rio - uma experiência gastronômica que jamais se esquecerá. Esses moradores da maior ilha fluvial do mundo talvez levem o visitante para assistir à dança de aruanã em noite de Lua cheia. Ele também ficará deslumbrado se tiver a chance de ver a celebração do hetô-hokan, em que convidados de todas as aldeias tentam derrubar - e os anfitriões, manter ereto - um mastro enorme, que simboliza a dignidade da aldeia. É um rito de passagem dos adolescentes para a vida adulta, festa que leva um dia e uma noite inteiros. 
Diz a história fundamental dos carajás que eles foram criados como peixes - aruanãs - e viviam, imortais, no fundo do grande rio. Como em todo mito de origem, estavam submetidos a uma proibição: não podiam passar por um buraco no fundo das águas. Um dia, porém, um aruanã quebrou a proibição, entrou pelo buraco e saiu numa das deslumbrantes praias de areia branca do Araguaia. Fascinado, retornou ao fundo do rio e contou sua saga a seu povo. E foram todos, juntos, pedir a seu herói criador, Kananciué, que lhes permitisse viver naquela praia branca. Kananciué argumentou que, para isso, teriam de deixar de ser peixes e de ser imortais. Eles aceitaram, e passaram a ser os carajás e a viver à beira do rio. O saudoso psicanalista Hélio Pellegrino costumava dizer que esse mito é uma síntese do que deve ser a sabedoria humana: aceitar a mortalidade para começar a viver. 

Tais histórias que mostram esse Araguaia de outros tempos estão ocultas em um livro perdido nas estantes, escrito na década de 1930 pelo paulista Hermano Ribeiro da Silva, Nos Sertões do Araguaia. Hermano saiu de São Paulo, chegou com um amigo a Aruanã, em Goiás (que naquele tempo se chamava Leopoldina), comprou uma canoa velha e mandou calafetar os buracos de seu casco. E saíram rio abaixo, pela água imensa, os dois paulistas, deslumbrados com tudo. Passaram pela ilha do Bananal e chegaram até a Santana do Araguaia, onde o parceiro de Hermano desistiu da viagem na canoa precária. Hermano vendeu-a, comprou um batelão e contratou dois índios como pilotos. Eles exigiram parte do pagamento adiantado, conseguiram um caixão cheio de mangas e divertiam-se espalhando cascas pelo piso para ver Hermano escorregar e cair na água. Mas ele continuou deslumbrado com tudo. Voltou para casa e escreveu seu célebre relato de viagem. 

A maior parte dos povos indígenas do Cerrado concentra-se no Parque Indígena do Xingu. Com 26,4 mil quilômetros quadrados no norte do Mato Grosso, na transição entre o Cerrado e a floresta Amazônica, o parque foi criado, em 1960, graças aos irmãos sertanistas Villas Bôas, e abriga 16 povos. Alguns estão por lá há uns 12 séculos, segundo estudos de antropólogos e arqueólogos. Hoje, contudo, o parque é uma ilha de vegetação exuberante, cercada por campos de soja e pastagens, onde nascem vários rios formadores do majestoso Xingu - por isso mesmo, ameaçado pelos agrotóxicos e pelos sedimentos carreados das margens desmatadas do Kuluene, do Batovi, do Ronuro e de outros afluentes. Além disso, os índios do Xingu andam temerosos de que os peixes, base de sua alimentação, não sejam mais capazes de subir os rios para desovar, interrompidos em sua trajetória pelas usinas hidrelétricas que estão sendo implantadas. Esses projetos ocupam inclusive territórios sagrados, como aquele em que Mavutsini ensinou aos xinguanos o belo ritual do kuarup, uma homenagem aos chefes ilustres que morrem e seguem para a aldeia dos ancestrais, onde nos encontraremos todos, algum dia. Até essa eternidade, seu nome não será mais pronunciado. 

Tais culturas escancaram o que o antropólogo francês Pierre Clastres chamou de "democracia do consenso". Nelas o chefe não manda, não dá ordens: ele é, sobretudo, o maior conhecedor da história daquele povo, de seu modo de viver. Aprendeu com seu pai desde menino, e por isso a chefia é hereditária. É também o grande mediador de conflitos, o que melhor fala e o que mais sofre - nunca, contudo, dá ordens. E, se não há delegação de poder, é impossível o domínio de um grupo ou pessoa sobre outro grupo ou pessoa. Todos são iguais, e o limite de cada um está na liberdade do outro, que é seu igual. Não bastasse isso, cada indivíduo é auto-suficiente. Sabe fazer tudo de que precisará ao longo da vida: manter a casa, a roça, seus instrumentos de trabalho, sua rede, sua esteira, sabe caçar e pescar, identifica na natureza as espécies que lhe podem ser úteis. Que luxo: passar a vida sem receber ordens e sem depender de ninguém, enfeitando-se, cantando e dançando, trabalhando apenas o necessário. Uma sociedade em que o homem não dá ordens à esposa nem sequer tem o direito de se queixar dela, pois uma queixa implica ter o direito de esperar determinado comportamento - e isso não existe para esses povos do Cerrado. 

Por que não se pensar, então, em reconhecer como patrimônio histórico, cultural e ambiental da humanidade a "ilha" xinguana de vegetação? Resistem ali preciosos recursos naturais em meio ao mar devastado pela agropecuária, lar de povos antigos que aprenderam a não sobrecarregar seu ambiente (sempre que uma aldeia cresce muito e começa a pressionar o entorno, divide-se em duas ou mais). É uma pena constatar que, ao contrário disso, para aflição dos mais velhos, a cultura branca influencia cada vez mais os jovens xinguanos, que querem viver de bermuda e camiseta coloridas, com tênis de marca e óculos escuros, dançando forró e jogando futebol. Para isso têm de esquecer suas tradições, as lindas formas de homenagear os espíritos que tudo regem. Cada animal e cada árvore têm um espírito que é seu "dono", e os pajés fazem a ligação entre os dois mundos. 

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