Gestão Integrada da Água
A gestão integrada da água
A estrutura gerencial de recursos hídricos não tem legitimidade e nem competência legal para abranger setores outros que, embora pesadamente influentes sobre o binômio quantidade/qualidade das águas conforme citado anteriormente, não se caracterizam em si mesmos como usuários de recursos hídricos. É o caso particularmente dos setores de habitação e de transporte urbano, que são decisivos na determinação dos processos de uso e ocupação do solo e, portanto, com grande interferência sobre a preservação de áreas de mananciais e zonas de restrição de vazão de enchente, mas que não se relacionam diretamente com os âmbitos de competência da gestão de bacias.
As alternativas que até então se afiguravam mais comuns para o administrador público envolvido com o abastecimento de água, eram ou a desapropriação das áreas a proteger - como por exemplo no caso de Nova York, que comprou os terrenos circundantes a seus principais mananciais em Nova Jersey - ou a adoção de medidas estruturais, mediante tratamento avançado da água captada e ampliação da oferta a partir de mananciais cada vez mais distantes.
Em que pese os problemas reais que advieram na aplicação das leis de proteção a mananciais - em grande parte por falta de uma articulação efetiva com os poderes públicos municipais integrantes da Região Metropolitana de São Paulo - aquele sistema normativo permitiu aliar uma estratégia de proteção ambiental, com forte caráter preventivo, a uma estrutura de gasto moderada por parte do poder público, que não teria meios para proceder a uma pura e simples desapropriação das áreas protegidas.
Nos termos daquela lei, as medidas específicas aplicáveis às áreas de proteção e recuperação de mananciais - APRM3, são definidas de forma descentralizada nos respectivos planos de desenvolvimento e proteção ambiental - PDPA4. Estes planos, articulados com o sistema de gerenciamento de recursos hídricos, são os principais instrumentos de gestão territorialmente descentralizada e funcionalmente abrangente definidos pela nova lei. A maioria das medidas propugnadas pela Lei 9.866/97 tem caráter não estrutural, no sentido de trabalharem com a prevenção dos processos de poluição e não com sua correção. As ações voltadas ao disciplinamento da qualidade ambiental, nos PDPA, assentam-se sobre uma estratégia básica de intervenções sobre áreas da bacia definidas como de restrição à ocupação, de ocupação dirigida e de recuperação ambiental. É evidente que, na ausência de uma política metropolitana, é possível ao sistema de gestão de cada APRM articular suas estratégias de uso e ocupação do solo diretamente com os poderes públicos municipais afetos. No entanto, o alcance das medidas assim desenhadas perde muito em relação ao que poderia ser se articuladas a um sistema de planejamento metropolitano. Perdem primeiro pela exigüidade jurisdicional da APRM, que não poderá traçar instrumentos estratégicos em conexão com outras APRM localizadas no mesmo complexo urbano metropolitano.
Um segundo elemento de perda provável, na articulação direta entre unidade gestora da APRM e poderes públicos municipais, diz respeito às limitações de alcance setorial quanto às funções públicas de interesse comum. A necessidade de integração entre os sistemas de gerenciamento de recursos hídricos e o planejamento metropolitano decorre do reconhecimento de que a lógica estrita das localidades, aplicada às bacias urbanizadas, leva à irracionalidade no investimento e na gestão dos sistemas setoriais. A gestão de sistemas setoriais a partir de uma lógica predominantemente local dá a ilusão de que, por tratar de diferentes setores convergindo para uma unidade geográfica restrita, promove a integração entre setores. No entanto, isso não é verdade se analisado à luz da funcionalidade dos sistemas setoriais em seu todo (e não em segmentos).
Instrumentos emergentes para aplicação da gestão integrada no âmbito do setor de recursos hídricos
O Plano de Bacia do Alto Tietê (FUSP, 2002) foi desenvolvido segundo objetivos de uma visão integrada da gestão, na qual a qualidade e a quantidade da água são dimensões entendidas como objetos indissociáveis no sistema de planejamento e gestão. Isto implica na necessidade de uma efetiva coordenação entre os distintos usos dos recursos hídricos, o que, na prática, tem demonstrado ser tarefa muito mais difícil do que levam a crer as formulações de princípios gerais de uso múltiplo. Se qualidade e quantidade são vistas como funções de uma mesma política de desenvolvimento e preservação, ações nas áreas de proteção de mananciais, esgotamento sanitário (dentro e fora das áreas protegidas) e drenagem urbana não podem mais ser tratadas como elementos setoriais estanques.
A visão integradora enunciada nos objetivos gerais do Plano traz como desafios subjacentes à organização institucional dos sistemas de planejamento e gestão por um lado a articulação territorial, envolvendo jurisdições distintas, e por outro a funcional, envolvendo setores que funcionam com base em processos específicos de planejamento, regulação, financiamento e operação. Ambas essas dimensões integradoras - territorial/jurisdicional e funcional/setorial - são igualmente importantes para que se possa preencher os objetivos propostos. O sistema institucional de planejamento e gestão dos recursos hídricos enfrentará, nessa direção, quatro ordens de desafios de integração:
- integração entre sistemas/atividades diretamente relacionadas ao uso da água na área da bacia hidrográfica, em particular o abastecimento público, a depuração de águas servidas, o controle de inundações, a irrigação, o uso industrial , o uso energético, ou ainda sistemas com impacto direto sobre os mananciais, como o de resíduos sólidos, tendo em vista a otimização de aproveitamentos múltiplos sob a perspectiva de uma gestão conjunta de qualidade e quantidade;
- integração territorial/jurisdicional com instâncias de planejamento e gestão urbana - os municípios e o sistema de planejamento metropolitano - tendo em vista a aplicação de medidas preventivas em relação ao processo de urbanização, evitando os agravamentos de solicitação sobre quantidades e qualidade dos recursos existentes, inclusive ocorrências de inundações;
- articulação reguladora com sistemas setoriais não diretamente usuários dos recursos hídricos - como habitação e transporte urbano - tendo em vista a criação de alternativas reais ao processo de ocupação das áreas de proteção a mananciais e das várzeas, assim como a viabilização de padrões de desenvolvimento urbano que em seu conjunto não impliquem agravamento nas condições de impermeabilização do solo urbano e de poluição sobre todo o sistema hídrico da bacia, à parte as áreas de proteção aos mananciais de superfície;
- articulação com as bacias vizinhas, tendo em vista a celebração de acordos estáveis sobre as condições atuais e futuras de importação de vazões e de exportação de águas utilizadas na Bacia. Este tipo de articulação tende a tornar-se decisivo e extremamente delicado no futuro, dado que todas as opções de ampliação absoluta de oferta de água para a Bacia, uma vez explorados seus próprios recursos, envolvem a importação de vazões das bacias vizinhas, além do já revertido da Bacia do Piracicaba.
Todos esses são desafios complexos e que não se podem enfrentar por inteiro dentro das competências específicas do sistema de gestão de recursos hídricos. Os três primeiros requerem uma forte articulação institucional com os sistemas de meio ambiente e de planejamento metropolitano - à parte a relação que se estabeleça com os poderes públicos municipais envolvidos - enquanto o último envolve uma articulação com os sistemas de gestão de bacias vizinhas.
Três grandes conjuntos de ações são organizados com vistas ao preenchimento das metas do Plano de Bacia do Alto Tietê (FUSP, 2002):
No primeiro grupo de medidas, destaca-se a absorção, pelo sistema de gestão da bacia, dos grandes planos setoriais empreendidos pelos principais agentes como Sabesp5, PMSP6, DAEE. Um plano de caráter indicativo, como o PBAT7, não comportaria estabelecer por si mesmo prioridades estruturais de investimento para os agentes setoriais. Afinal, são eles mesmos os responsáveis pela captação dos recursos necessários à sua realização e pelo retorno financeiro dos serviços prestados. Por outro lado, o Plano não pode ignorar a existência dessas prioridades setoriais e centrar seus esforços sobre uma plataforma de desenvolvimento institucional e de melhoria a planejamento e gestão descolada daquelas. A forma encontrada foi a inclusão das prioridades setoriais já definidas como elementos do Plano de Bacia, a partir das quais se constrói um sistema de compromissos e de apoio à gestão integrada.
No segundo bloco, das medidas de caráter institucional e legal, destaca-se o conceito de flexibilização normativa associado ao sistema de adesão incentivada dos agentes às metas do Plano, como corolário do reconhecimento sobre seu caráter predominantemente indicativo. Aqui contemplam-se medidas de caráter extremamente inovador, como a criação de sistemas que incentivem os agentes estaduais, municipais e privados a pautarem suas ações de acordo com os objetivos deste plano, isto é, que melhorem sua atuação no que se refere à proteção de áreas de mananciais e várzeas, gestão da demanda de água e uso racional, gestão dos resíduos sólidos e gestão da água subterrânea. Para aquelas metas de recuperação e/ou conservação dos recursos hídricos cujo caráter seja negociável, estabelece-se um processo de adesão gradativa, no qual o agente é incentivado à conformidade. Esses incentivos tanto podem ser traduzidos em benefícios financeiros por acesso facilitado a recursos do FEHIDRO8 como em uma maior autonomia para a definição de medidas específicas, com descentralização de atribuições do sistema de gestão da bacia em favor do agente conforme. Incorporam-se também neste caso a importância do desenvolvimento dos diversos PDPA's e sua integração ao plano maior, que é o da bacia hidrográfica. A flexibilização assim induzida, ao contrário de um eventual enfraquecimento do sistema de gestão, é uma estratégia voltada a seu fortalecimento, ao lhe conferir instrumentos ágeis de revisão e reestruturação de procedimentos específicos, com vistas ao preenchimento de seus objetivos de forma eficiente e eficaz.
No terceiro bloco, as medidas voltadas à melhoria do processo de decisão - ações em planejamento e gestão - constituem um contraponto essencial aos requisitos de flexibilidade assumidos na estratégia institucional do sistema, tendo em vista a grande dependência de uma gestão flexível em relação a sistemas de informação robustos e transparentes.
A conservação e o uso racional da água de uma perspectiva integrada
Uma outra dimensão da gestão metropolitana não coberta pelo sistema de gerenciamento de recursos hídricos é a regulação - no plano normativo mais geral, subordinado às estratégias de ordenação do território e de desenvolvimento urbano - dos serviços públicos usuários de água. Se não houver uma diretriz definida entre os municípios integrantes da região metropolitana sobre quais áreas devem ser objeto de ação prioritária, em função das estratégias comuns de expansão urbana e ordenação do território, não há como o sistema de gerenciamento de bacia - por moto próprio, mesmo que em harmonia com o prestador de serviços de saneamento - articular suas ações com essa perspectiva localizada de orientação do desenvolvimento urbano.
Não compete ao sistema de gerenciamento de recursos hídricos, menos ainda à concessionária de saneamento básico - ou ao serviço de drenagem ou a qualquer outro serviço usuário da água - traçar estratégias gerais de desenvolvimento urbano/regional. Por outro lado, elas são fundamentais para uma articulação mais avançada da estratégia de gestão da bacia com os serviços usuários da água.
Uma visão mais abrangente dos programas e ações de conservação e uso racional da água impõe-se como elemento vital de uma concepção integrada dos sistemas de gestão da Bacia e de planejamento metropolitano. Esse tipo de programa, em grande parte baseados em ações de gestão da demanda, nem sempre é bem compreendido em seu escopo e amplitude.
A gestão da demanda de água, em uma bacia com os problemas de escassez que tem a do Alto Tietê, é medida essencial de ampliação de oferta relativa, no sentido de aumentar o número de usuários atendidos adequadamente pelo sistema de abastecimento público, mantidas as vazões ofertadas em grosso na saída das estações de tratamento de água.
São bem conhecidos das operadoras de serviço de água os programas específicos de controle de perdas na rede e de melhoria operacional voltada à redução de perdas de faturamento. Essas ações são importantes e implicam - no caso das reduções de perdas físicas - ganhos efetivos de disponibilidade na Bacia. No entanto há outras ações, voltadas à gestão da demanda - que incluem redução de consumo de água faturada - que como regra - não são incluídas no planejamento estratégico dos sistemas. A menos de situações excepcionais de escassez e de custos marginais muito elevados para a exploração de novos mananciais - momentaneamente abaixo dos preços máximos possíveis de serem praticados no sistema tarifário - não é vocação do serviço de água promover programas estáveis de gestão de demanda.
O Programa Pura9 da Sabesp, nesse contexto, destaca-se como uma exceção positiva pelo fato de apoiar iniciativas de melhoria dos sistemas prediais e de educação sanitária que podem reverter em redução de demanda. Mas não é razoável, em uma concepção estratégica de gestão de demanda na Bacia, concentrar na esfera da prestadora de serviço de abastecimento de água toda a responsabilidade sobre a gestão de demanda.
Em uma perspectiva de longo prazo, na qual a gestão dos serviços está sujeita a prioridades estratégicas próprias de cada setor, o compromisso com a gestão de demanda pode esvair-se entre as ações que deixaram de ser prioritárias. Um programa estável de gestão da demanda, nos termos dos princípios estratégicos do Plano de Bacia do Alto Tietê, requer uma estrutura decisória e gerencial independente da empresa de saneamento, embora nada impeça que esta continue a abrigar o sistema executivo e a ter papel central na definição de prioridades específicas daquele.
O espectro de atividades cabíveis em cenários de desenvolvimento básico, intermediário e avançado de uma política estável de conservação e uso racional da água (Silva et al., 1998) envolve, além de medidas diretamente relacionadas à redução de perdas e usos abusivos, várias possibilidades de interação com as competências dos municípios e do sistema de planejamento metropolitano. Medidas como a inibição de uso da "vassoura d'água" e da lavagem de veículos, ou a adoção de boas práticas de projeto e execução dos sistemas prediais - inclusive troca subsidiada de aparelhos - apenas se concretizam com o concurso dos poderes públicos municipais e mediante a existência de uma política metropolitana especificamente voltada a estes objetivos.
É necessário que a estrutura de um programa metropolitano de conservação e uso racional da água se assente sobre uma competência gerencial atuante, que possa medir com clareza os custos e os benefícios associados a cada um dos níveis de ação preconizados. Dessa maneira, diferentes níveis de avanço e complexidade das ações de gestão de demanda poderão ser racionalmente definidos, em confronto com os custos e benefícios da ampliação da oferta. Esta visão estratégica da gestão de demanda aplica-se não só com respeito à exploração de novos mananciais (no sentido de garantir que o custo da vazão recuperada não supere o da nova vazão a explorar), mas também com respeito aos regimes operacionais de cada reservatório em função dos riscos hidrológicos de falha.
A competência institucional para a execução de um programa com essas características parece fluir naturalmente para o Sistema de Gestão da Bacia, mais especificamente para a Agência da Bacia. No entanto, as articulações com ações urbanas e habitacionais mais amplas conduzem novamente à necessidade de articulação com uma instância metropolitana atuante. Por outro lado, permitiu que se estabelecessem bases para uma cooperação intergovernamental em matéria de uso do solo, em uma convergência de competências estadual e municipais. Estes fundamentos foram acolhidos pela nova legislação estadual de proteção aos mananciais - a Lei 9.866/97 - que passou a incorporar princípios do sistema de gerenciamento de recursos hídricos em sua estratégia de execução.
2 DAEE - Departamento de Águas e Energia Elétrica - SP.
3 APRM - Área de Proteção e Recuperação de Mananciais.
4 PDPA - Plano de Desenvolvimento e Recuperação Ambiental.
5 Sabesp - Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo.
6 PMSP - Prefeitura Municipal de São Paulo.
7 PBAT - Plano da Bacia do Alto Tiête.
8 FEHIDRO - Fundo Estadual de Recursos Hídricos.
9 Pura - Programa de Uso Racional da Água.
Diretrizes relativas, por exemplo, ao adensamento de áreas centrais e descompressão de núcleos em situação crítica - que freqüentemente são associadas a modalidades de permuta territorial de direitos - ficam limitadas à jurisdição interna da APRM, que muitas vezes poderá não comportar, em seu território, disponibilidade de área e de infra-estrutura para acomodar as pressões que deseja controlar.
Há escalas dessas funções cujo controle apenas se define em âmbito metropolitano e quando isso ocorre será muito difícil estabelecer uma articulação entre os objetivos estratégicos do PDPA e da função considerada. Este é o caso, por exemplo, da articulação com os sistemas de transporte urbano: alguns modos e traçados caem dentro da jurisdição dos municípios que compõem a APRM e para esses será possível estabelecer articulações coerentes com os objetivos específicos do PDPA quanto às áreas de ocupação e preservação. No entanto, quando a interferência se der com sistemas estruturais de transporte metropolitano, a articulação, fundada exclusivamente na jurisdição da APRM, será assimétrica com relação à jurisdição setorial e, assim, a lógica setorial tende a prevalecer. A única instância legítima para estabelecer um processo de articulação abrangente entre as funções públicas de interesse comum no complexo urbano/regional em seu todo é a metropolitana e esta não é substituível, em seu alcance setorial, pelo sistema de gerenciamento de recursos hídricos.
1 Emplasa - Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano.
Desdobram-se como elementos - chave desses requisitos de informação a ampliação na capacidade de monitoramento da qualidade da água superficial, o desenvolvimento de sub-sistema de informações sobre águas subterrâneas e a integração de diferentes bases setoriais de informações urbanas. Como ação comum aos dois blocos, destaca-se a estratégia de conservação e uso racional da água mediante programas articulados e estáveis de gestão da demanda, em contraposição a ações emergenciais de redução de consumo, conforme detalhamento a seguir.
Os instrumentos reguladores associados ao sistema de gerenciamento de recursos hídricos articulam os usos da água e os serviços associados a eles essencialmente no que respeita à outorga de uso e à operação das estruturas hidráulicas, mas não interferem na regulação de cada serviço. Não obstante, há muitos aspectos da prestação dos serviços que interferem, indiretamente, na estratégia de gestão da bacia. Um exemplo é a cobertura e a eqüidade nos padrões de prestação dos serviços de saneamento básico internamente à mancha urbana.
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