Era uma vez a Mata Atlântica
O encontro com a Mata Atlântica tanto entusiasmou quanto intrigou os portugueses no começo do século 16. Do outro lado do oceano Atlântico, na mesma latitude, o litoral africano, já conhecido pelos exploradores, era marcado sobretudo por desertos cujas dunas chegavam até as praias na costa dos Esqueletos, no que é hoje a Namíbia. Além disso, na África, as águas eram geladas. Aqui, eram quentes. Por que esse contraste? Por que uma floresta tropical úmida apenas de um lado do Atlântico?
Ao mesmo tempo que redesenhavam o mapa-múndi desbravando terras desconhecidas, os sábios navegadores lusitanos aos poucos perceberam que um mecanismo natural, agindo com base em um ciclo de correntes marinhas no hemisfério sul, é o maior responsável pelo surgimento de florestas chuvosas e biodiversas nos litorais orientais, entre as quais a Mata Atlântica é o exemplo mais cintilante. As correntes marinhas deixam a Antártica, girando sempre no sentido anti-horário, em todos os oceanos, até fluírem novamente para o sul. Ventos regulares garantem que a umidade se condense e vire chuva, fechando um ciclo.
"Assentado sobre um daqueles penedos, donde via o mais alto cume, lançando os olhos para baixo, me parecia que olhava do céu, da Lua, e que via todo o globo da Terra posto debaixo dos meus pés e com notável formosura, pela variedade de vistas, do mar, da terra, dos campos, dos bosques, e serranias, tudo vario, e sobremaneira aprazível." O padre José de Anchieta registrou essa visão de astronauta, imaginando-se no céu ou na Lua enquanto contemplava as escarpas da serra do Mar, descansando em meio a suas andanças na trilha por ele mesmo construída entre São Vicente e São Paulo. As dificuldades e os perigos dessa via, batizada com seu nome, não impediam Anchieta de observar a exuberância vegetal e declarar seu encantamento.
O Caminho de Anchieta foi, durante séculos, a principal trilha para ir e voltar do litoral ao planalto paulista. Após a travessia dos manguezais, começava uma jornada a pé de vários dias através da mata. O viajante enfrentava mosquitos, chuvas e garoas, frio, ataques de animais, passagens escorregadias e o esforço de elevar o próprio corpo e seu carregamento, em meio à floresta, para mais de 700 metros de altitude. Em meados do século 17, o padre Simão Vasconcelos assim descreveu a difícil ascensão: "O mais do espaço não é caminhar, é trepar de pés e de mãos, aferrados às raízes das árvores, e por entre quebrados tais e de tais despenhadeiros, que confesso de mim, que a primeira vez em que passei por aqui me tremeram as carnes, olhando para baixo. A profundeza dos vales é espantosa: quando cuidais que chegais ao cume de um, achai-vos ao pé de outro não menor".
Antes de vir ao Brasil, José de Anchieta recebera excelente formação em Coimbra e tinha um conhecimento elevado do saber e da cultura da Europa de seu tempo. Muitas de suas obras descreveram a flora e a fauna da Mata Atlântica. Apesar do caráter onipresente e quase opressivo do bioma e da adversidade de sua biodiversidade, Anchieta defendeu a proteção aos animais e alertou sobre cuidados com a natureza.
A postura de Anchieta era extensiva a seus conterrâneos. Vivendo num pequeno território pobre em recursos naturais, o povo português sempre soube valorizar as florestas. Rapidamente, as explorações da nova terra mostraram aos lusitanos o quanto essa faixa de mata úmida era estreita e limitada. Pilhada por piratas e objeto de povoamentos desordenados, sua existência estava em perigo. Em paralelo com a defesa armada contra os contrabandistas de pau-brasil, a legislação da coroa portuguesa, entre os séculos 16 e 18, preocupou-se, e muito, com a preservação e o uso racional da Mata Atlântica.
No tempo dos descobrimentos, as Ordenações do Reino eram a principal fonte de todo o direito. Essas compilações de leis vigentes começaram com as Ordenações Afonsinas, em 1446. As Ordenações Manuelinas, organizadas por dom Manuel I, foram concluídas em 1514 e dedicaram vários títulos e capítulos à preservação dos recursos naturais. Elas fizeram de Portugal o primeiro país da Europa a sistematizar um corpus legal dessa magnitude.
O livro V, no título "C", por exemplo, tipificava o corte de árvores frutíferas como crime. Em Portugal, isso representava uma dúzia de espécies (macieira, nogueira, pessegueiro, cerejeira, pereira e outras). Estendida às terras descobertas, contudo, essa legislação ganhou alcance enorme. Na Mata Atlântica, araçá, jabuticaba, taperebá, cambucás, pitanga, grumixama, murici, jatobá, pinhão, abiú, mangaba, araticum, cajá, tarumã, pindaíba, uvaia, cambuci, guabiroba, jenipapo, bacuri, goiaba, cambuí, pitomba, joá e outras frutas nativas tiveram suas árvores-mãe protegidas do corte e da derrubada. Em poucos anos, o Reino do Brasil e a Mata Atlântica tinham uma lista de dezenas de árvores, de grande valor pela qualidade de sua madeira, cujo corte era proibido por lei. Eram as chamadas árvores reais, ou paus de lei. Elas deram origem à expressão "madeira de lei", que perdura até hoje.
A partir de 1548, para evitar a destruição da floresta e orientar seu uso racional, a legislação da coroa portuguesa tomou um rosto local. O Governo Geral do Brasil editou e aplicou regimentos, ordenações, alvarás e outros instrumentos legais para preservar os recursos naturais. Eles proibiam a pesca com rede em certas épocas, o lançamento nos rios de material prejudicial aos peixes e exigiam estudos para aprovar a instalação de engenhos de açúcar, por exemplo.
Para cuidar da Mata Atlântica com tantos critérios, era preciso conhecê-la. No século 16, ninguém igualou o trabalho científico de Gabriel Soares de Souza. Ele exerceu a ciência de seu tempo e o fez de forma equilibrada: não se fixou nas curiosidades e exuberâncias nem tratou com desprezo ou desinteresse as realidades exóticas da floresta brasileira. Foi objetivo e sistemático. Culto, amigo de Luís de Camões, apaixonado por descobertas, Gabriel de Souza viveu 17 anos no Brasil. Além de ter explorado o rio São Francisco, entre outros feitos, ele editou um imponente Tratado Descritivo do Brasil, em 1587.
Foi o trabalho mais enciclopédico da literatura portuguesa desse período. Nele, cerca de 250 capítulos são dedicados à Mata Atlântica. Mais de 70 deles são usados para descrever a costa, os rios e a vida na floresta. O estudo parte da embocadura do Amazonas, progride pelo Pará e Maranhão, de lá ao Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, passa pelo rio São Francisco, pela baía de Todos os Santos, por Ilhéus, Porto Seguro, Caravelas, rio Doce, cabo de São Tomé, cabo Frio, Rio de Janeiro, São Vicente e Cananéia, no atual litoral sul paulista, até chegar à lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, antes de concluir a jornada no rio da Prata. Sua abordagem da flora da Mata Atlântica descreve árvores e ervas medicinais, e as espécies com potencial madeireiro. Ele completa a descrição botânica com as "árvores meãs com diferentes propriedades, dos cipós e folhas úteis", num total de quase 80 tomos. Uma descrição pioneira da fauna abrange outros 70 capítulos.
Gabriel Soares de Souza foi um visionário. Para ele, a melhor maneira de preservar uma floresta era valorizá-la. O pesquisador tinha razão. O pouco que resta da Mata Atlântica deve-se, em grande parte, à exploração do pau-brasil, madeira da qual se extraía um pigmento muito usado na época para o tingimento de roupas.
A despeito das preocupações conservacionistas, graves desordens e ações predatórias marcaram as primeiras décadas do corte do pau-brasil. Após uma série de estudos, a coroa editou, em 1605, o Regimento do Pau-Brasil, um marco de política florestal e a primeira lei de uso e preservação da Mata Atlântica. Em seu preâmbulo, o rei dizia estar ciente dos abusos na exploração do pau-brasil, de como a árvore se tornava rara, de como a Mata Atlântica se degradava e empobrecia, obrigando a penetração por léguas em direção ao interior na busca dessa espécie.
Segundo esse regimento, antes de dar uma licença de corte do pau-brasil, o provedor deveria obter informações cuidadosas sobre o caráter e os antecedentes do requerente. O provedor mantinha um livro de registros das licenças outorgadas. Assinado e numerado, esse livro registrava todas as licenças, declarava o nome dos licenciados, as confrontações de áreas, as quantidades de pau-brasil licenciadas e outros dados referentes à exploração. Existiam penas proporcionais a quem desrespeitasse sua licença de corte do pau-brasil. O excedente era sempre confiscado. Por exemplo, se passasse de 600 quilos, multa de 100 cruzados. Acima de 3 toneladas, açoite e degredo por dez anos em Angola. Ultrapassando 6 toneladas, perda da fazenda e execução.
Para evitar a corrupção dos provedores, as concessões eram anuais. Antes de renová-las, o provedor deveria fazer uma avaliação: se a mata suportava a quantidade outorgada, se não estava havendo sub ou superexploração dos recursos. Para garantir transparência, a repartição das outorgas era feita em público, às claras. O regimento mantinha uma auditoria independente, vinda de Lisboa, sem prévio aviso.
O maior dano à mata estava na forma de corte do pau-brasil. Os contratantes queriam receber troncos roliços e maciços, deixando no campo galhos e ramos. Face ao desperdício, o rei ordenou, no parágrafo 8 do regimento: "Mando a que daqui em diante se aproveite todo o que for de receber, e não se deixe nenhum pau cortado, e que os contratadores o recebam todo [...]"
Outra causa de extinção era a ausência de rebrotas, devido à forma do corte, não deixando ramos nem varas, e, sobretudo, o fato de queimarem trechos desmatados para plantar. O rei transformou essas áreas em coutos reais. As pessoas tinham direito de uso sobre as árvores, mas não sobre as terras: elas seriam reservas florestais da coroa, e não áreas destinadas à agricultura.
Essas e outras medidas permitiram um manejo sustentado das florestas de pau-brasil e a preservação da Mata Atlântica. O último carregamento de pau-brasil foi exportado em 1875. A exploração não cessou devido ao desaparecimento das matas, mas por razões comerciais, de perda de competitividade da espécie com a entrada das anilinas no mercado da tinturaria.
A conservação também já havia se confirmado em diversas outras leis. Desde 1760, um alvará real de dom José I protegia os manguezais. Em 1797, uma série de cartas régias consolidou novas leis ambientais: pertencia à coroa toda a mata à borda da costa, de rio que desembocasse no mar ou que permitisse a passagem de jangadas transportadoras de madeira. A criação dos "juízes conservadores", aos quais coube aplicar as penas previstas na lei, foi outro marco em favor das florestas. As penas eram de multa, prisão, degredo e até pena capital para incêndios dolosos. (A primeira lei de crimes ambientais da era republicana no Brasil só foi promulgada em 1999...) A coroa criou ainda o Regimento de Cortes de Madeiras, com regras rigorosas para a derrubada de árvores, além de outras restrições à implantação de roçados.
Do século 17 ao 19, o desmatamento limitou-se a alguns pontos da faixa costeira. Para evitar danos no Rio de Janeiro, uma área populosa, dom João VI criou, em junho de 1808, uma pioneira unidade de conservação, o Real Horto Botânico, com mais de 2,5 mil hectares, área que se manteve até o fim do século 19 - todo um bairro da capital fluminense nasceu sobre a reserva, hoje reduzida a 137 hectares. Mais: uma ordem de dom João, de abril de 1809, dava liberdade aos escravos que denunciassem contrabandistas de pau-brasil. Um decreto de 3 de agosto de 1817 proibiu o corte de árvores nas áreas das nascentes do rio Carioca. Por essas e outras, em 1830 o total de áreas desmatadas no Brasil em mais de três séculos era inferior a 30 mil quilômetros quadrados - hoje, corta-se mais que isso na Amazônia a cada três anos. Não bastasse, em 1844 o ministro Almeida Torrres propôs uma série de desapropriações e plantios de árvores para salvar os mananciais do Rio de Janeiro. Em 1861, dom Pedro II promoveu a criação, em áreas desmatadas para o café, das florestas da Tijuca e das Paineiras, na área onde encontra-se hoje o Cristo Redentor, no atual Parque Nacional da Tijuca.
"Assentado sobre um daqueles penedos, donde via o mais alto cume, lançando os olhos para baixo, me parecia que olhava do céu, da Lua, e que via todo o globo da Terra posto debaixo dos meus pés e com notável formosura, pela variedade de vistas, do mar, da terra, dos campos, dos bosques, e serranias, tudo vario, e sobremaneira aprazível." O padre José de Anchieta registrou essa visão de astronauta, imaginando-se no céu ou na Lua enquanto contemplava as escarpas da serra do Mar, descansando em meio a suas andanças na trilha por ele mesmo construída entre São Vicente e São Paulo. As dificuldades e os perigos dessa via, batizada com seu nome, não impediam Anchieta de observar a exuberância vegetal e declarar seu encantamento.
O Caminho de Anchieta foi, durante séculos, a principal trilha para ir e voltar do litoral ao planalto paulista. Após a travessia dos manguezais, começava uma jornada a pé de vários dias através da mata. O viajante enfrentava mosquitos, chuvas e garoas, frio, ataques de animais, passagens escorregadias e o esforço de elevar o próprio corpo e seu carregamento, em meio à floresta, para mais de 700 metros de altitude. Em meados do século 17, o padre Simão Vasconcelos assim descreveu a difícil ascensão: "O mais do espaço não é caminhar, é trepar de pés e de mãos, aferrados às raízes das árvores, e por entre quebrados tais e de tais despenhadeiros, que confesso de mim, que a primeira vez em que passei por aqui me tremeram as carnes, olhando para baixo. A profundeza dos vales é espantosa: quando cuidais que chegais ao cume de um, achai-vos ao pé de outro não menor".
Antes de vir ao Brasil, José de Anchieta recebera excelente formação em Coimbra e tinha um conhecimento elevado do saber e da cultura da Europa de seu tempo. Muitas de suas obras descreveram a flora e a fauna da Mata Atlântica. Apesar do caráter onipresente e quase opressivo do bioma e da adversidade de sua biodiversidade, Anchieta defendeu a proteção aos animais e alertou sobre cuidados com a natureza.
A postura de Anchieta era extensiva a seus conterrâneos. Vivendo num pequeno território pobre em recursos naturais, o povo português sempre soube valorizar as florestas. Rapidamente, as explorações da nova terra mostraram aos lusitanos o quanto essa faixa de mata úmida era estreita e limitada. Pilhada por piratas e objeto de povoamentos desordenados, sua existência estava em perigo. Em paralelo com a defesa armada contra os contrabandistas de pau-brasil, a legislação da coroa portuguesa, entre os séculos 16 e 18, preocupou-se, e muito, com a preservação e o uso racional da Mata Atlântica.
No tempo dos descobrimentos, as Ordenações do Reino eram a principal fonte de todo o direito. Essas compilações de leis vigentes começaram com as Ordenações Afonsinas, em 1446. As Ordenações Manuelinas, organizadas por dom Manuel I, foram concluídas em 1514 e dedicaram vários títulos e capítulos à preservação dos recursos naturais. Elas fizeram de Portugal o primeiro país da Europa a sistematizar um corpus legal dessa magnitude.
O livro V, no título "C", por exemplo, tipificava o corte de árvores frutíferas como crime. Em Portugal, isso representava uma dúzia de espécies (macieira, nogueira, pessegueiro, cerejeira, pereira e outras). Estendida às terras descobertas, contudo, essa legislação ganhou alcance enorme. Na Mata Atlântica, araçá, jabuticaba, taperebá, cambucás, pitanga, grumixama, murici, jatobá, pinhão, abiú, mangaba, araticum, cajá, tarumã, pindaíba, uvaia, cambuci, guabiroba, jenipapo, bacuri, goiaba, cambuí, pitomba, joá e outras frutas nativas tiveram suas árvores-mãe protegidas do corte e da derrubada. Em poucos anos, o Reino do Brasil e a Mata Atlântica tinham uma lista de dezenas de árvores, de grande valor pela qualidade de sua madeira, cujo corte era proibido por lei. Eram as chamadas árvores reais, ou paus de lei. Elas deram origem à expressão "madeira de lei", que perdura até hoje.
A partir de 1548, para evitar a destruição da floresta e orientar seu uso racional, a legislação da coroa portuguesa tomou um rosto local. O Governo Geral do Brasil editou e aplicou regimentos, ordenações, alvarás e outros instrumentos legais para preservar os recursos naturais. Eles proibiam a pesca com rede em certas épocas, o lançamento nos rios de material prejudicial aos peixes e exigiam estudos para aprovar a instalação de engenhos de açúcar, por exemplo.
Para cuidar da Mata Atlântica com tantos critérios, era preciso conhecê-la. No século 16, ninguém igualou o trabalho científico de Gabriel Soares de Souza. Ele exerceu a ciência de seu tempo e o fez de forma equilibrada: não se fixou nas curiosidades e exuberâncias nem tratou com desprezo ou desinteresse as realidades exóticas da floresta brasileira. Foi objetivo e sistemático. Culto, amigo de Luís de Camões, apaixonado por descobertas, Gabriel de Souza viveu 17 anos no Brasil. Além de ter explorado o rio São Francisco, entre outros feitos, ele editou um imponente Tratado Descritivo do Brasil, em 1587.
Foi o trabalho mais enciclopédico da literatura portuguesa desse período. Nele, cerca de 250 capítulos são dedicados à Mata Atlântica. Mais de 70 deles são usados para descrever a costa, os rios e a vida na floresta. O estudo parte da embocadura do Amazonas, progride pelo Pará e Maranhão, de lá ao Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, passa pelo rio São Francisco, pela baía de Todos os Santos, por Ilhéus, Porto Seguro, Caravelas, rio Doce, cabo de São Tomé, cabo Frio, Rio de Janeiro, São Vicente e Cananéia, no atual litoral sul paulista, até chegar à lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, antes de concluir a jornada no rio da Prata. Sua abordagem da flora da Mata Atlântica descreve árvores e ervas medicinais, e as espécies com potencial madeireiro. Ele completa a descrição botânica com as "árvores meãs com diferentes propriedades, dos cipós e folhas úteis", num total de quase 80 tomos. Uma descrição pioneira da fauna abrange outros 70 capítulos.
Gabriel Soares de Souza foi um visionário. Para ele, a melhor maneira de preservar uma floresta era valorizá-la. O pesquisador tinha razão. O pouco que resta da Mata Atlântica deve-se, em grande parte, à exploração do pau-brasil, madeira da qual se extraía um pigmento muito usado na época para o tingimento de roupas.
A despeito das preocupações conservacionistas, graves desordens e ações predatórias marcaram as primeiras décadas do corte do pau-brasil. Após uma série de estudos, a coroa editou, em 1605, o Regimento do Pau-Brasil, um marco de política florestal e a primeira lei de uso e preservação da Mata Atlântica. Em seu preâmbulo, o rei dizia estar ciente dos abusos na exploração do pau-brasil, de como a árvore se tornava rara, de como a Mata Atlântica se degradava e empobrecia, obrigando a penetração por léguas em direção ao interior na busca dessa espécie.
Segundo esse regimento, antes de dar uma licença de corte do pau-brasil, o provedor deveria obter informações cuidadosas sobre o caráter e os antecedentes do requerente. O provedor mantinha um livro de registros das licenças outorgadas. Assinado e numerado, esse livro registrava todas as licenças, declarava o nome dos licenciados, as confrontações de áreas, as quantidades de pau-brasil licenciadas e outros dados referentes à exploração. Existiam penas proporcionais a quem desrespeitasse sua licença de corte do pau-brasil. O excedente era sempre confiscado. Por exemplo, se passasse de 600 quilos, multa de 100 cruzados. Acima de 3 toneladas, açoite e degredo por dez anos em Angola. Ultrapassando 6 toneladas, perda da fazenda e execução.
Para evitar a corrupção dos provedores, as concessões eram anuais. Antes de renová-las, o provedor deveria fazer uma avaliação: se a mata suportava a quantidade outorgada, se não estava havendo sub ou superexploração dos recursos. Para garantir transparência, a repartição das outorgas era feita em público, às claras. O regimento mantinha uma auditoria independente, vinda de Lisboa, sem prévio aviso.
O maior dano à mata estava na forma de corte do pau-brasil. Os contratantes queriam receber troncos roliços e maciços, deixando no campo galhos e ramos. Face ao desperdício, o rei ordenou, no parágrafo 8 do regimento: "Mando a que daqui em diante se aproveite todo o que for de receber, e não se deixe nenhum pau cortado, e que os contratadores o recebam todo [...]"
Outra causa de extinção era a ausência de rebrotas, devido à forma do corte, não deixando ramos nem varas, e, sobretudo, o fato de queimarem trechos desmatados para plantar. O rei transformou essas áreas em coutos reais. As pessoas tinham direito de uso sobre as árvores, mas não sobre as terras: elas seriam reservas florestais da coroa, e não áreas destinadas à agricultura.
Essas e outras medidas permitiram um manejo sustentado das florestas de pau-brasil e a preservação da Mata Atlântica. O último carregamento de pau-brasil foi exportado em 1875. A exploração não cessou devido ao desaparecimento das matas, mas por razões comerciais, de perda de competitividade da espécie com a entrada das anilinas no mercado da tinturaria.
A conservação também já havia se confirmado em diversas outras leis. Desde 1760, um alvará real de dom José I protegia os manguezais. Em 1797, uma série de cartas régias consolidou novas leis ambientais: pertencia à coroa toda a mata à borda da costa, de rio que desembocasse no mar ou que permitisse a passagem de jangadas transportadoras de madeira. A criação dos "juízes conservadores", aos quais coube aplicar as penas previstas na lei, foi outro marco em favor das florestas. As penas eram de multa, prisão, degredo e até pena capital para incêndios dolosos. (A primeira lei de crimes ambientais da era republicana no Brasil só foi promulgada em 1999...) A coroa criou ainda o Regimento de Cortes de Madeiras, com regras rigorosas para a derrubada de árvores, além de outras restrições à implantação de roçados.
Do século 17 ao 19, o desmatamento limitou-se a alguns pontos da faixa costeira. Para evitar danos no Rio de Janeiro, uma área populosa, dom João VI criou, em junho de 1808, uma pioneira unidade de conservação, o Real Horto Botânico, com mais de 2,5 mil hectares, área que se manteve até o fim do século 19 - todo um bairro da capital fluminense nasceu sobre a reserva, hoje reduzida a 137 hectares. Mais: uma ordem de dom João, de abril de 1809, dava liberdade aos escravos que denunciassem contrabandistas de pau-brasil. Um decreto de 3 de agosto de 1817 proibiu o corte de árvores nas áreas das nascentes do rio Carioca. Por essas e outras, em 1830 o total de áreas desmatadas no Brasil em mais de três séculos era inferior a 30 mil quilômetros quadrados - hoje, corta-se mais que isso na Amazônia a cada três anos. Não bastasse, em 1844 o ministro Almeida Torrres propôs uma série de desapropriações e plantios de árvores para salvar os mananciais do Rio de Janeiro. Em 1861, dom Pedro II promoveu a criação, em áreas desmatadas para o café, das florestas da Tijuca e das Paineiras, na área onde encontra-se hoje o Cristo Redentor, no atual Parque Nacional da Tijuca.
O desmatamento da Mata Atlântica, na verdade, é fenômeno do século 20. Entre 1985 e 1995, a floresta perdeu mais de 1 milhão de hectares, mais que toda a área desmatada no período da coroa portuguesa. De São Paulo a Santa Catarina, a marcha para o oeste trouxe grandes desmatamentos. É difícil imaginar que, em 1950, o Paraná ainda detivesse grandes extensões de mata preservada. As centenárias araucárias, um símbolo do estado, foram entregues pelos governos republicanos aos construtores de ferrovias anglo-americanos, junto com as terras adjacentes (de 15 a 30 quilômetros de cada lado). A cidade de Londrina lembra em seu nome essa entrega aos ingleses. Caboclos foram expulsos com violência; suas terras, loteadas e vendidas a estrangeiros. Isso deu origem a um dos episódios mais sangrentos dos governos militares da república, a Guerra do Contestado, ou dos Pelados, entre 1912 e 1916.
O pensamento e a crítica ambiental brasileira de hoje resultam de uma continuidade histórica de séculos, uma tradição intelectual única. A política florestal da coroa portuguesa e do império no Brasil logrou, por diversos e invejáveis mecanismos, manter a Mata Atlântica até o fim do século 19 com poucos locais alterados.
São muitas as formas de relevo na geografia da floresta: morros em meia-laranja do Nordeste, pães de açúcar do Espírito Santo ao Rio de Janeiro, encostas rochosas, falésias, costões e escarpas entre São Paulo e Rio Grande do Sul. Tal relevo contrasta com planícies costeiras estreitas e parece prolongar-se mar adentro em arquipélagos próximos à costa, de Santa Catarina ao Espírito Santo. As ilhas oceânicas, formadas pela elevação do nível do mar, abrigam diversos endemismos, com suas jararacas e aranhas especialíssimas.
Mas as ilhas da Mata Atlântica não estão apenas no mar. Elas também ocorrem em terra firme. As encostas e os cumes das serras Geral, da Bocaina e da Mantiqueira são ambientes diferenciados do entorno e estão cheios de fauna e flora exclusivas, típicas de matas de neblina e campos de altitude. Algumas bromélias são vistas apenas numa das faces do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Alguns anfíbios, por sua vez, vivem exclusivamente em certas espécies de bromélia.
Durante as glaciações e mudanças climáticas, as espécies adaptaram-se, deslocaram-se e participaram de verdadeiras migrações para o norte ou para o sul, quando o clima esfriava ou esquentava. Viveram as chamadas marés terrestres ou ecológicas, subindo e descendo encostas, explorando compensações entre latitude e altitude. E também extinguindo-se localmente. A araucária, por exemplo, distribui-se por mais de 1,2 mil quilômetros. No sul, surge em terras baixas, mas progride rumo ao norte, ganhando altitude, até deixar de ocorrer na altura de Minas Gerais. Todavia, no passado, sob outro clima, a araucária existiu em toda a região Nordeste, como atestam numerosos fósseis.
A disposição longitudinal da Mata Atlântica, suas variações de altitude e as mudanças climáticas contribuíram para o surgimento e a manutenção de novas espécies, de forma mais vigorosa que na Amazônia. Nela já foram registradas cerca de 261 espécies de mamíferos (73 endêmicos), 340 de anfíbios (253 endêmicos), 192 de répteis (60 endêmicos), 1 020 de aves (188 endêmicas), além de cerca de 20 mil plantas, das quais metade seria exclusiva. Essa diversidade de espécies e sua repartição são também resultado de fragmentações espaciais, em altitude e latitude, que marcaram a história dessa paisagem tropical. O desmatamento no século 20 provocou nova e rápida fragmentação. Um processo análogo na Amazônia teria consequências bem negativas - a Mata Atlântica é mais apta a enfrentar essa situação que outros biomas do Brasil.
É uma floresta que se recompõe rapidamente, com sua infinidade de vegetais adaptados à umidade. Orquídeas, musgos, líquens, samambaias e bromélias envolvem galhos e troncos, em árvores que cumprem sua obrigação cotidiana de luta pela luz, disputando espaços horizontais e verticais nas terras de relevo acidentado. Contudo, a água pesa. E muito. Neblinas, chuvas e orvalhos mantêm troncos e galhos úmidos. O peso dessa esponja verde é enorme. Basta um apodrecimento ou umas gramíneas a mais, e os galhos se rompem e caem. Surge nova clareira para a luz acariciar o chão enquanto insetos, fungos e bactérias atacam os restos apodrecidos.
Toneladas de água caem por metro quadrado em toda a Mata Atlântica. Chove com maior regularidade que na Amazônia. Um dos lugares mais chuvosos do Brasil fica no Paraná, nos arredores do pico do Marumbi, região da serra da Graciosa: cerca de 5 metros de chuva por ano (5 mil milímetros), o dobro das médias da Amazônia. Ubatuba, em São Paulo, recebe mais chuva que a maioria das localidades amazônicas. Quais as consequências desse peso hídrico, desses milhões de toneladas de água precipitada sobre as serras, escoando pelas encostas e descendo pelos rios? O trajeto da maioria dos rios das bacias atlânticas é bastante curto. A erosão deveria ser alta. Contudo, as águas chegam ao sopé das serras quase sem sedimentos, cristalinas.
Para dissipar a energia cinética da água, a Mata Atlântica recorre a muitas sutilezas. Parte das gotas de chuva são capturadas por teias de aranha, nas pinças e curvas das folhas de samambaia, nas taças de líquem e cogumelo e nos copos de bromélia. Os galhos, paralelos ao solo e perpendiculares às chuvas, retêm muita água num labirinto de cascas, musgos, líquens, samambaias, bromélias, orquídeas e outras epífitas. As gotas de chuva estão proibidas de cair em queda livre até o solo da Mata Atlântica. A floresta fechada absorve até 35% das chuvas.
Folhas brilhantes, recobertas de cera, interceptam, mas não retêm, as gotas de chuva. As águas celestes descem lentamente pelas folhas, pelos ramos e tronco até as realidades terrestres em que se dissipam em espessa serapilheira de folhas e galhos mortos. Com tudo encharcado, o excesso hídrico desce as encostas em direção ao mar original. Impossibilitados de cavar as rochas expostas, os rios tendem a serpentear e aumentar o seu percurso para dissipar sua energia cinética. Nas regiões serranas do Paraná ao Espírito Santo, eles abrem um largo caminho sobre as rochas em sua jornada. Nas baixadas, o leito dos rios é ocupado por rochas e matacões, arredondados pela carícia incessante das águas.
Entre névoas e neblinas, uma caminhada pela Mata Atlântica densa mais parece um mergulho em águas etéreas. É como um retorno ao passado, a um tempo sem tempo, situado entre o gênese e o dilúvio. A serapilheira amortece os passos. Os sons são atenuados e absorvidos. As flechas de luz incidente são raras. O sub-bosque é marcado pela claridade difusa. Não existe direção privilegiada dos raios luminosos. Eles difundem-se em todos os sentidos e, por timidez, se escondem nas trevas.
Plantas e arbustos próximos do chão, para aumentar as chances de captar esses pequenos raios luminosos, apresentam folhas aveludadas ou com superfície arredondada, como se fossem múltiplas bolhas. Elas funcionam como armadilha de luz ou lupa: captam a luz difusa e a concentram num ponto interior das células, onde ficam as estruturas que fazem a fotossíntese.
As plantas são verdes por refletirem essa fração da luz solar. Elas não gostam do verde e o devolvem. No sub-bosque da Mata Atlântica, diante da escassez de luz, toda a gama de radiação luminosa é utilizada, incluindo o verde. Há plantas roxas, vermelho-escuras ou quase negras. Elas absorvem e utilizam o espectro luminoso. Algumas devoram a luz visível e brilham em tons metálicos, próximos do ultravioleta.
Em meio aos arbustos e sob os tons crepusculares, os morcegos começam a trabalhar cedo e recolhem-se tarde, observados por cogumelos vistosos e silenciosos. Trampolins de perereca e abrigo de seres encantados, alguns cogumelos são até fosforescentes. Para o caminhante contemplativo, o sub-bosque da Mata Atlântica, com sua luminosidade azulada, marinha e difusa, lembra um aquário. Tudo, nessa paisagem desenhada pelo mar, evoca a proximidade da corrente oceânica atlântica em sua quieta caminhada rumo ao sul, conectada ao movimento dos planetas e ao sussurro das estrelas.
AS FLORESTAS QUE VÊM DO MAR Um mecanismo regular de correntes marinhas girando no sentido anti-horário, comum em todos os oceanos do hemisfério sul, é o principal formador de florestas nas fachadas orientais dos continentes. No Atlântico, correntes de águas frias (ver setas azuis no mapa) saem da Antártica e rumam no sentido nordeste. Ao longo do litoral africano, não evaporam. Ao contrário, estabilizam a atmosfera e determinam um clima árido, sem chuvas, na África do Sul e na Namíbia. Essa corrente fria acompanha o litoral atlântico africano e se aquece enquanto segue em direção ao equador. Então muda para o sentido leste– oeste e, com suas águas aquecendo-se sempre mais (setas vermelhas no mapa), desce ao longo da costa brasileira, na direção sul. Em 1984, impulsionado por essa corrente, Amyr Klink remou da Namíbia até a Bahia, em uma jornada de pouco mais de três meses. O mesmo ocorre nas demais faces leste do hemisfério sul, todas originalmente ocupadas por florestas úmidas, enquanto as faces oeste apresentam desertos costeiros.
As correntes marítimas circulam porque a Terra gira. A rotação terrestre gera, para quem se desloca na superfície do planeta, o fenômeno conhecido como força de Coriolis. Se a gravidade nos “puxa” para baixo, a força de Coriolis nos “empurra” na direção oeste. E isso aumenta quando nos deslocamos do sul para o norte: se alguém caminhasse do Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte com um mesmo calçado, notaria que a sola gastaria mais do lado esquerdo. No oceano, a força de Coriolis “inclina” as águas vindas da Antártica na direção oeste e origina o sentido anti-horário das correntes no hemisfério sul. No hemisfério norte ocorre o contrário.
Assim, como um relógio, a mecânica celeste, ao deslocar as grandes massas oceânicas, cria as condições para a Mata Atlântica na costa leste do Brasil. Chuvas, umidade e ventos constantes (desenho acima) são o produto dessa dança cósmica, responsável pela existência de florestas úmidas e desertos costeiros nos litorais opostos da América da Sul, África, Madagascar e Austrália.
O LITORAL VERDE
A variação climática latitudinal e a oscilação de altitudes criam um mosaico de comunidades vegetais na Mata Atlântica. Uma cordilheira costeira acompanha o litoral. Do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo, ela eleva-se a quase 3 mil metros, em um trecho marcado pela presença regular de xaxins, samambaias do tempo dos dinossauros. Já a araucária ocorre em terras baixas no Sul, mas progride rumo norte, ganhando altitude, até Minas Gerais. A partir de Sergipe, surgem serras isoladas. O podocarpo, outra conífera do sul do Brasil, ressurge em altitude em Sergipe e Pernambuco.
As várias palmeiras são de áreas baixas, e fornecem palmito e folhas para artesanato e construção. Índios davam ao Brasil o nome de Pindorama, “Terra das Palmeiras”
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