terça-feira, 18 de novembro de 2014

Geografia da Fome: Desperdício de Alimentos




Onde sobra, falta


O mundo ainda se dá ao luxo de jogar fora um terço dos alimentos que produz. O desperdício é uma dívida social – e uma responsabilidade para indivíduos, empresas e governos – tão grande quanto combater a fome 
e a desnutriçãopor Giedre Moura e Otavio Valle

  
Diariamente o Brasil joga fora 91 mil toneladas de alimentos (Foto: Otavio Valle)


“Melhor sobrar do que faltar.” De origem latina, esse dito popular, que vem desde os tempos romanos, acaba explicando uma infeliz realidade no mundo de hoje. Segundo a ONU, até chegar ao prato do consumidor, pelo menos 30% da produção anual de alimentos é desperdiçada. No Brasil, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais estima que diariamente vão para o lixo 91 mil toneladas.


Um exemplo desse desperdício pode ser presenciado no cotidiano de uma feira livre. No decorrer da manhã, os feirantes descartam produtos aparentemente sem condições de venda. Por volta do meio-dia, esse descarte já forma pequenas montanhas, que poderiam garantir o almoço de necessitados. Maria de Lourdes dos Santos chega com os quatro filhos e enche algumas sacolas. “É com essa comida que a gente cata aqui do lixo que consigo alimentar minha família.”Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), 64% do alimento plantado pelo agricultor nacional não chega à mesa dos brasileiros: 20% se perdem na colheita, 8% no transporte e armazenamento, 15% no processamento e o restante no processo culinário e nos hábitos alimentares da população.


Para enfrentar esse círculo vicioso, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) atua tanto na pesquisa como na orientação dos atores desse processo. Celso Moretti, chefe-geral da Embrapa Hortaliças, diz que o maior vilão é a falta de informação: “As perdas que vemos desde a colheita, nas embalagens, transporte, armazenamento até a exposição ocorrem por desconhecimento de tecnologia existente por parte de todos os envolvidos na cadeia produtiva”.


Outra iniciativa que pretende dar um destino adequado ao que poderia virar lixo são os bancos de alimentos. Existem dois tipos de alimentos excedentes. Os chamados in natura, em condições de consumo, mas que por algum motivo não serão mais comercializados (por exemplo, por não apresentarem um visual atrativo). E os industrializados, que possuem registro e data de validade (apesar de terem condições de consumo, próximos do fim da validade são de difícil comercialização).


Há também dois métodos de trabalho mais comuns: o banco de alimentos propriamente dito e a colheita urbana. O banco é uma unidade fixa, com estrutura de armazenagem, que recebe doações e as disponibiliza para retirada por parte das instituições. É um dos padrões mais usados por prefeituras e companhias de abastecimento. Já por meio da colheita urbana, a entidade responsável faz a retirada e entrega os alimentos excedentes a outras instituições.


Uma das experiências pioneiras no Brasil foi o Mesa São Paulo, do Sesc, estimulada pela Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, liderada pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho. No início, em 1994, eram oferecidas cerca de 600 refeições por dia a instituições parceiras. Depois, passou-se a fazer a distribuição de alimentos aliada a um conjunto de ações educacionais. “Queríamos ir além do assistencialismo. Um projeto que fosse mais abrangente, que desse o peixe e também ensinasse a pescar”, explica Luciana Gonçalves, coordenadora do projeto em São Paulo.


Desde 2003, o programa mudou de nome para Mesa Brasil, com abrangência nacional. A realidade de cada estado é levada em conta na maneira de operar. Enquanto em São Paulo os hortifruti são predominantes nas doações que vão complementar as refeições das entidades assistidas, no Maranhão, os itens da cesta básica são prioridade. “Há uma carência muito grande nas instituições, que não têm o básico para servir”, conta a nutricionista do programa no Maranhão, Delbana Pereira Rodrigues. O estado tem o maior índice de insegurança alimentar no país. São 30,9% dos lares sem acesso adequado à alimentação, segundo o IBGE.


Outra iniciativa é a ONG paulistana Banco de Alimentos. Fundada em 1999, a instituição recolhe excedentes de produtores, atacadistas e varejistas e os distribui a entidades que atendem pessoas carentes. A ONG faz a chamada colheita urbana, com quatro carros passando pelos pontos previamente indicados pelos doadores. Cada viatura possui uma destinação específica na cidade. “Além de garantir a agilidade e reduzir custos, preserva-se a qualidade, pois o alimento não fica circulando pela cidade”, explica Isabel Marçal, nutricionista e coordenadora do projeto.


A reportagem da Revista do Brasil acompanhou um dia de trabalho da equipe de colheita urbana, que começou pela Vegetais Processados, empresa que atua com a distribuição de alimentos in natura ou minimamente processados (descascados, limpos e embalados) para cozinhas de grande porte. A clientela da empresa só aceita produtos sem um “defeito” sequer. “Muitas vezes o padrão não é compatível nem com a realidade da natureza”, conta o administrador da empresa, Felipe Cussnir. Em razão desse perfil, da produção diária de 15 mil quilos de alimentos, cerca de 4 mil a 5 mil quilos são dispensados. Na conta também entram cascas e talos. Algo entre 300 e 500 quilos estão próprios para consumo e vão para o Banco de Alimentos. O restante segue para uma usina de compostagem mantida pela empresa.


O motorista Valter dos Santos encosta a perua no setor de cargas da empresa doadora e tudo está preparado para a retirada. A primeira parada para entrega é o Centro para a Criança e o Adolescente Paulo de Tarso. Para a entidade ser conveniada com o Banco de Alimentos é necessário atender a uma série de requisitos. Um deles é participar semanalmente das atividades e cursos de nutrição promovidos pela ONG. “Com a verba que recebemos da prefeitura, garantimos apenas o básico das refeições. Todas as frutas, verduras e legumes consumidos aqui são provenientes das doações”, conta Rosangela Cuccolo, diretora da instituição: 64% do alimento plantado pelo agricultor nacional não chega à mesa dos brasileiros


Como os bancos trabalham apenas com comida in natura ou industrializada, a pergunta é: por que não é feito o mesmo com o arroz e feijão excedentes de um restaurante? A questão nesse caso é delicada. “Para um restaurante doar alimentos de maneira correta, além da complexidade do manuseio e das normas de vigilância, que implicariam utilização de equipamentos de alto custo, há o problema da legislação, que não protege o doador de boa-fé. A responsabilidade por problema de saúde atribuído à comida doada recai sobre quem produziu o alimento”, explica o microbiologista Eneo Alves da Silva Júnior, do Centro de Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo.


Desde 1996 está em tramitação no Congresso a Lei do Bom Samaritano, que visa regulamentar doações e isentar o doador de responsabilidade civil ou penal, se houver algum dano causado pelo consumo do bem doado, desde que não se caracterize dolo ou negligência. Enquanto a proposta não anda, uma maneira de minimizar o desperdício por meio das doações é oferecer a comida diretamente aos necessitados. “A solução mais prática seria os restaurantes servirem refeições aos carentes enquanto estão em condições de conservação”, conclui o microbiologista, lembrando que, além do desperdício, a fome e a desnutrição são dívidas sociais que merecem o engajamento de todos na busca por soluções.


O jeito é se programar


Quem em sã consciência teria coragem de rasgar uma nota de 100 reais? Pois segundo o Instituto Akatu, organização voltada para o consumo consciente, é o que fazemos: um terço do que compramos vai para lixo. Ou seja, se gastamos R$ 300 numa compra de mercado, R$ 100 vão embora à toa.


Acabamos não percebendo o tamanho do desperdício no dia a dia: é um resto de leite jogado fora numa manhã, um tomate passado descartado no outro dia. Para reduzir o desperdício, é essencial planejar: fazer uma lista  de compras, segui-la à risca e não pegar nas gôndolas mais itens do que o necessário. Somem-se a isso dicas conhecidas, como não ir ao mercado com fome, não sucumbir a promoções, substituir a compra mensal por semanais, e o desperdício e os gastos podem cair cerca de 20%.


Ao falar sobre o desperdício de alimentos estamos visualizando uma das variantes de um problema muito maior: a segurança alimentar, tema que tem ganhado espaço na agenda mundial. O primeiro passo foi dado em 1996, quando a ONU promoveu em Roma a Cúpula Mundial sobre Alimentação, que traçou como objetivo reduzir pela metade, até 2015, os efeitos da fome no mundo.


Segurança alimentar é a garantia de acesso de todas as pessoas, durante toda a vida, a alimentos suficientes, seguros e nutritivos para uma vida ativa e saudável. Mas as estatísticas brasileiras são preocupantes. Uma pesquisa realizada em 2006 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e pelo IBGE revelou que 18 milhões de lares vivem em estado de insegurança alimentar. Ou seja, 34,8% das famílias não têm acesso a alimentação de qualidade. Uma aberração.


A produção interna de alimentos permitiria alimentar os 191 milhões de brasileiros e ainda apresentar um excedente de 25%. Seriam 2.960 calorias diárias disponíveis por habitante, mais que as 2.350 recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. Outro paradoxo: a FAO estima em 11,7 milhões os brasileiros em estado de desnutrição e em 70 milhões os obesos

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